Manuel Santos Piedade, esguio, fumador, casado e com uma filha, vindo a ser pai enquanto tropa, é um algarvio forte, mas que a doença vai minando a pouco-e-pouco.
Pertencíamos ao 4.º pelotão. Na despedida, concluída a especialidade, o Piedade seguiu para o quartel de Faro, a dois passos da sua terra (Olhão) e eu segui para Lisboa, Batalhão de Telegrafistas, na Graça.
decorridos que foram dois meses, já em Lourenço Marques, a fim de seguir para o norte de Moçambique, mais concretamente Muidumbe, zona de Mueda, no distrito de Cabo Delgado, eis que chega ao porto o Niassa, em cujo navio iria fazer a viagem até Mocímboa da Praia. Qual não foi o meu espanto quando vi o Piedade, que também ia para o mesmo Batalhão (1878), mas cada um para diferente Companhia: ele para a 1502 (Miteda), eu para a 1504 (Muidumbe).
Como o Batalhão tinha já 15 meses quando nos integrámos, em Montepuez ficámos à espera de colocação. Veio a ordem oficial que íamos integrar o Comando de Agrupamento do Sector F de Tete.
Fomos os dois e daqui jamais nos separámos. Entretanto, meses antes, recebera o Piedade a notícia de que fora novamente pai de outra menina. E foi por causa das meninas e com medo que algo lhe acontecesse, pois faltavam poucos meses para irmos para a Beira, que fui no lugar dele para uma operação, partilhada com os rodezianos, realizada na zona de Gago Coutinho, na fronteira com a Zâmbia. Falou-me ao coração e eu acedi, e hoje sinto orgulho por isso. Foram 12 dias que por lá andei, que até a minha família acabou por ficar incomodada, por estar tanto tempo sem mandar notícias. Felizmente cheguei são e salvo, apenas com a barba de 12 dias…
Durante esses dias acabei por abraçar também um amigo de Torrozelas, o Belmiro Domingos, que era padeiro. Nada faltou, nem tão-pouco a «água-Lisboa»… vinho para os brancos. Hoje, quando vem «à cidade», recordamos esses tempos.
Passada toda esta vivência, eis que chegou a hora do regresso, depois de termos passado oito meses na Beira. Foi no final de Agosto de 1969. Embarcámos no «Angola», o mesmo navio que me tinha levado.
O desembarque aconteceu no dia 22 de Setembro, no cais de Alcântara. Aguardavam-no a esposa do Piedade, a Aura, com as filhas, e da minha parte o meu saudoso e sempre querido irmão Silvino.
Despedimo-nos, abraçados por momentos. Calados, mas com uma lágrima traiçoeira a roçar o rosto de cada um. Decorridos dois anos, porém, encontrámo-nos em Fátima. Depois, não mais nos vimos, somente nos escutamos ao telemóvel.
Decorridos quarenta anos a hora chegou. No passado dia 15 de Julho, tendo ido com familiares ao Algarve, não podia deixar de ver o meu amigo Piedade. Lá fui a Olhão, à Rua Almirante Reis, n.º 34. Sabendo que o Piedade luta com doença que não perdoa, situada num pulmão, mais uma força interior me impeliu para o ir visitar e dar-lhe um abraço de força, de amizade, de solidariedade.
O abraço foi tão forte, que as lágrimas de ambos se misturaram com a alegria dos netos que brincavam mesmo ali e que são o seu enlevo. A Aura, sempre solícita, generosa, bom coração, que ainda tem tempo para ajudar outros que precisam, não deixa o marido em qualquer circunstância, mesmo quando anda em tratamentos dolorosos para lhe atenuar a doença. Lá estava sempre prazenteira e com um sorriso nos lábios.
Embora as dificuldades sejam o pão de cada dia daquele casal, essa dificuldade é atenuada pela alegria e amizade entre a família, sendo uma mais-valia daquela casa, pois o Piedade e a Aura tiveram ainda mais dois filhos, que lhe deram 9 netos e três bisnetos. É uma família que se ajuda irmãmente e vêem nos progenitores uns pais de verdade.
A casa do Piedade é um espaço aberto, de grandes dimensões. É como aquela casa que o Solnado clamava: «Tragam-me a sopa!». Nas paredes, a galeria da família, desde os verdes anos de cada um e já adultos.
O Piedade teve um lugar de peixe no mercado de Olhão. Mas devido à doença teve que deixar. Como se atrasou nos pagamentos à Segurança Social, agora quando podia receber a sua reforma, tem que esperar mais alguns meses, até que as contas com o Estado estejam saldadas. É uma pequena renda de uma loja que lhe vai atenuando as despesas. Os filhos, esses, lá estão na retaguarda, sempre a ver de que os pais precisam.
É uma família que, mesmo com adversidades tão acentuadas, vivem de uma forma aberta, simpática, sem grandes lamentos, só aqueles que doem no corpo e na alma.
Chegou a despedida. Um abraço forte e a promessa de nos voltarmos a abraçar. Prometo Piedade, com lágrimas e tudo… Já no carro ainda os lobrigámos na varanda, dizendo adeus. Um adeus forte e… com muita esperança.
Texto de: José Travassos de Vasconcelos
Pertencíamos ao 4.º pelotão. Na despedida, concluída a especialidade, o Piedade seguiu para o quartel de Faro, a dois passos da sua terra (Olhão) e eu segui para Lisboa, Batalhão de Telegrafistas, na Graça.
decorridos que foram dois meses, já em Lourenço Marques, a fim de seguir para o norte de Moçambique, mais concretamente Muidumbe, zona de Mueda, no distrito de Cabo Delgado, eis que chega ao porto o Niassa, em cujo navio iria fazer a viagem até Mocímboa da Praia. Qual não foi o meu espanto quando vi o Piedade, que também ia para o mesmo Batalhão (1878), mas cada um para diferente Companhia: ele para a 1502 (Miteda), eu para a 1504 (Muidumbe).
Como o Batalhão tinha já 15 meses quando nos integrámos, em Montepuez ficámos à espera de colocação. Veio a ordem oficial que íamos integrar o Comando de Agrupamento do Sector F de Tete.
Fomos os dois e daqui jamais nos separámos. Entretanto, meses antes, recebera o Piedade a notícia de que fora novamente pai de outra menina. E foi por causa das meninas e com medo que algo lhe acontecesse, pois faltavam poucos meses para irmos para a Beira, que fui no lugar dele para uma operação, partilhada com os rodezianos, realizada na zona de Gago Coutinho, na fronteira com a Zâmbia. Falou-me ao coração e eu acedi, e hoje sinto orgulho por isso. Foram 12 dias que por lá andei, que até a minha família acabou por ficar incomodada, por estar tanto tempo sem mandar notícias. Felizmente cheguei são e salvo, apenas com a barba de 12 dias…
Durante esses dias acabei por abraçar também um amigo de Torrozelas, o Belmiro Domingos, que era padeiro. Nada faltou, nem tão-pouco a «água-Lisboa»… vinho para os brancos. Hoje, quando vem «à cidade», recordamos esses tempos.
Passada toda esta vivência, eis que chegou a hora do regresso, depois de termos passado oito meses na Beira. Foi no final de Agosto de 1969. Embarcámos no «Angola», o mesmo navio que me tinha levado.
O desembarque aconteceu no dia 22 de Setembro, no cais de Alcântara. Aguardavam-no a esposa do Piedade, a Aura, com as filhas, e da minha parte o meu saudoso e sempre querido irmão Silvino.
Despedimo-nos, abraçados por momentos. Calados, mas com uma lágrima traiçoeira a roçar o rosto de cada um. Decorridos dois anos, porém, encontrámo-nos em Fátima. Depois, não mais nos vimos, somente nos escutamos ao telemóvel.
Decorridos quarenta anos a hora chegou. No passado dia 15 de Julho, tendo ido com familiares ao Algarve, não podia deixar de ver o meu amigo Piedade. Lá fui a Olhão, à Rua Almirante Reis, n.º 34. Sabendo que o Piedade luta com doença que não perdoa, situada num pulmão, mais uma força interior me impeliu para o ir visitar e dar-lhe um abraço de força, de amizade, de solidariedade.
O abraço foi tão forte, que as lágrimas de ambos se misturaram com a alegria dos netos que brincavam mesmo ali e que são o seu enlevo. A Aura, sempre solícita, generosa, bom coração, que ainda tem tempo para ajudar outros que precisam, não deixa o marido em qualquer circunstância, mesmo quando anda em tratamentos dolorosos para lhe atenuar a doença. Lá estava sempre prazenteira e com um sorriso nos lábios.
Embora as dificuldades sejam o pão de cada dia daquele casal, essa dificuldade é atenuada pela alegria e amizade entre a família, sendo uma mais-valia daquela casa, pois o Piedade e a Aura tiveram ainda mais dois filhos, que lhe deram 9 netos e três bisnetos. É uma família que se ajuda irmãmente e vêem nos progenitores uns pais de verdade.
A casa do Piedade é um espaço aberto, de grandes dimensões. É como aquela casa que o Solnado clamava: «Tragam-me a sopa!». Nas paredes, a galeria da família, desde os verdes anos de cada um e já adultos.
O Piedade teve um lugar de peixe no mercado de Olhão. Mas devido à doença teve que deixar. Como se atrasou nos pagamentos à Segurança Social, agora quando podia receber a sua reforma, tem que esperar mais alguns meses, até que as contas com o Estado estejam saldadas. É uma pequena renda de uma loja que lhe vai atenuando as despesas. Os filhos, esses, lá estão na retaguarda, sempre a ver de que os pais precisam.
É uma família que, mesmo com adversidades tão acentuadas, vivem de uma forma aberta, simpática, sem grandes lamentos, só aqueles que doem no corpo e na alma.
Chegou a despedida. Um abraço forte e a promessa de nos voltarmos a abraçar. Prometo Piedade, com lágrimas e tudo… Já no carro ainda os lobrigámos na varanda, dizendo adeus. Um adeus forte e… com muita esperança.
Texto de: José Travassos de Vasconcelos
um bom amigo de arganil
ResponderEliminar